Das impermanências

Espaço cultural BRDE expõe pinturas de Fabrício Garcia



 “A Quarentena”, um dos 13 trabalhos que podem ser vistos no BRDE, na Capital. Fotos Divulgação 



            O Espaço Cultural BRDE Governador Celso Ramos, em Florianópolis (SC), promove até o dia 7 de outubro a exposição “Redes do Invisível” do artista visual Fabrício Garcia. A mostra, aberta no dia 8 de setembro, reúne pinturas que retratam peixes e mãos que trabalham duro no manejo da pesca e no preparo do alimento. A curadoria é de Marcello Carpes. 

Nos recortes e fragmentos da representação em 13 óleos sobre tela propõe-se uma reflexão sobre o universal a partir do local, o universo pesqueiro de Garopaba, município do litoral sul de Santa Catarina. Embora essas obras revelem uma intimidade afetiva, aspectos do cotidiano familiar e da cidade, há singularidades sobre essa produção que vão além da pura operação pictural sobre o visível. Em âmbito invisível, a partir da percepção da própria subjetividade há uma reflexão sobre o espírito do tempo, o lugar físico e o simbólico, ritmo e repetição, a vida humana.

Mais do que enaltecer práticas e hábitos comportamentais de indivíduos que vivem diante do mar, em zona pesqueira, o conceito curatorial estabelece um diálogo entre o tempo e a memória, a partir do pensamento de Henri Bergson (1859-1941) que entende o tempo como um movimento que possibilita criar proximidades com a memória. De acordo com o curador Marcello Carpes, é possível trilhar um caminho a partir do não visto, as obras têm força suficiente para instaurar uma rede de sentidos com amplo público. Para ele, Fabrício Garcia impregna suas telas de referências visuais para muito além da ideia cristalizada da cultura litorânea. 

O conceito, em sua primeira camada, exerce de imediato um referencial aos habitantes ilhéus e/ou litorâneos. Por sugestão, Carpes recomenda um distanciamento no que diz respeito ao visível. Com um olhar contemporâneo, o artista traz para o visível as memórias, os afetos e as pessoas que praticam o mar, com toda sua beleza e força visceral. 


Comprometimento com a comunidade 

Fabrício Garcia começa a sua trajetória na caricatura, como Manohead, participando de importantes concursos nacionais e internacionais, nos quais conquista mais de 40 prêmios. Nos últimos anos, seu trabalho ganha novas camadas que se dão pelo uso de diferentes técnicas, das mais tradicionais como o desenho, à xilogravura até as mais contemporâneas como a pintura digital. Os óleos sobre tela, reunidos pela primeira vez no BRDE, num primeiro momento, chamam a atenção, para a representação que se insere na chamada figuração contemporânea, em que pinturas e esculturas apresentam temas com uma exatidão de detalhes extremamente minuciosos. 

Neto de pescador, morador de Garopaba, potencializa os atributos artísticos com um forte engajamento comunitário. Além de retratar a paisagem e cenas sobretudo da região do centro histórico onde vive com a família, ele coloca a sua arte e crença em favor do desenvolvimento cultural da cidade. Criou e promoveu o Encontro de Pintura ao Ar Livre em 2017. Em três edições, a segunda em 2019 e a última de modo virtual, em 2021, atraiu artistas de diferentes Estados brasileiros e inclusive de Portugal e da Argentina. 

Conhecedor da história da arte e dos paradigmas do tempo contemporâneo, comprometido com sua comunidade, Fabrício Garcia precisa ser pensado como um artista-etc., termo criado pelo pensador brasileiro Ricardo Basbaum. Nesta perspectiva, pode ser definido como um profissional que está além da criação propriamente dita. É um artista-ativista, um artista-produtor, um artista-agenciador. O artista-etc., de acordo com Basbaum, traz ainda para o primeiro plano conexões entre arte & vida e arte & comunidades, abre caminho para a rica e curiosa mistura entre singularidade e acaso, entre o pensamento e as diferenças culturais e sociais.”

O artista contemporâneo nem sempre está interessado na autoria personalista de seus projetos, é o que ocorre ao realizar “Memórias Invisíveis”, quando propõe um museu a céu aberto em que aproxima duas linguagens, a da cerâmica e a outra digital. Ainda em andamento, o projeto consiste em instalações sonoras em que os interessados podem ouvir depoimentos acessados por meio de QR Codes fixos em paredes de casas do centro histórico e que, para associar como um espaço de escuta, estão sinalizados por uma peça de cerâmica em forma de orelha. A escolha do material decorre das edificações, já que a maioria das casas envolvidas são de alvenaria. Ao estimular a escuta, rememorações e troca de experiências possíveis no mundo contemporâneo, faz o trabalho artístico se desdobrar no campo educativo e turístico. Com o smartphone e esses dispositivos sonoros, descobre-se fragmentos de memórias da cidade enunciados pelos moradores que “reverberam o sotaque local e dão novos sentidos para pequenas narrativas de pessoas comuns”, explica Fabrício Garcia.  

Questões artísticas e conceituais 

Ao ouvir as histórias do povo de sua cidade, o artista percebe que a própria fala também se constitui parte da memória. O torpor pandêmico, a morte de anciãos e a perda irreparável de seus conhecimentos, motiva “Memórias Invisíveis”. Como artista, conhecedor dessas vidas, Fabrício quis de alguma forma resgatá-las da invisibilidade, levar essas vozes para além do tempo presente, torná-las participantes da obra em si. 

A mostra “Redes do Invisível”, que fica aberta no BRDE até sete de outubro, está em consonância com o museu sonoro. Embora os dois projetos sejam autônomos, ambos incorporam o desejo de constituir história, memória e arquivo. Além de depoimentos orais, as mãos neste segundo caso são um símbolo forte na compreensão do artista que produziu as pinturas no isolamento social com camadas de pensamento que não se limitam à pura representação. Pelos gestos, Fabrício cria os meios de fazer ver o que não aparece, as percepções acentuadas na pandemia e que cada vez mais contagiam as questões artísticas e conceituais dos trabalhos.

Nos detalhes quase inobservados de uma técnica corporal específica, o corte e a limpeza do peixe, uma habilidade manual, um hábito metafísico coletivo e individual alcança outra dimensão na tela “Amor de Mãe”, na qual a matriarca do artista, Ana Maria Rodrigues Garcia, manuseia as ovas do peixe. O emocional e os sentimentos, no entanto, só ganham nome no retrato do avô, Alcides Adair Rodrigues (1935-2018). 

No conjunto de trabalhos, portanto, há uma força melancólica que resulta da constatação do esquecimento e da invisibilidade. Fora isso, a violência: os peixes estão mortos, alguns esquartejados, cheios de sangue. Uma mosca na tela “A Quarentena”, por exemplo, sinaliza a angústia sobre um tempo que “obrigou a refletir sobre o estar aqui, olhar a própria realidade e perceber que as minúcias é que transformam o cotidiano e o ser”, diz Fabrício. Como se vê, o visitante desta mostra, se sensível, perceberá que nesta produção artística há muito mais do que apenas tainhas, olhos-de-boi, palombetas e sororocas.




Fabrício Garcia, aqui na ponte Hercílio Luz, em Florianópolis,
integra a agenda cultural da Capital até o dia 7 de outubro
Fotos Divulgação 


Sobre o artista

Fabrício Garcia, Garopaba, 1985. Artista, professor e produtor cultural, é bacharel e licenciado em artes visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). É um dos caricaturistas mais premiados de Santa Catarina. O currículo aponta inúmeras conquistas com destaques em 2013 no júri popular no 21º Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP) e primeiro lugar no 21º Salão Internacional de Desenho para Imprensa de Porto Alegre (RS). Como artista convidado participou da Bienal Internacional da Caricatura no Rio de Janeiro (2013). Trata-se de uma trajetória em ascensão já com algumas participações em exposições coletivas, como em 2018, quando integrou “Entre Cléa”, na Galeria Municipal de Arte Pedro Paulo Vecchietti, e “Eppur Si Muove”, no Museu Escola Catarinense (Mesc), ambas em Florianópolis. Em 2020, conquistou o Prêmio por Reconhecimento de Trajetória Cultural Aldir Blanc. É o idealizador e organizador do Encontro de Pintura ao Ar Livre de Garopaba e produtor do documentário “A Arte em Garopaba”.


 



Equipe técnica

Artista: Fabrício Garcia

Curador: Marcello Carpes

Produção: Fabrício Garcia

Montagem: Denilson Antonio

Design gráfico: Ezcuze

Fotografia: Maria Luísa Coura

Assessoria de imprensa: Néri Pedroso